Nita Freire: “Quem tem a utopia de construir um mundo melhor está com Paulo Freire”

Nita Freire

Para Paulo Freire, não podemos falar de Educação se não falarmos de amor. Sua amorosidade é um dos aspectos que educadores apontam como seus grandes legados. Ainda que a referência seja a um amor mais amplo, vale lançar um olhar aos dois grandes amores vivenciados pelo educador: sua primeira esposa Elza Maia da Costa Oliveira, falecida em 1986 e com quem viveu por 42 anos, e Ana Maria Araújo Freire, mais conhecida como Nita Freire, com quem dividiu a vida entre 1987 e 1997, e que continua viva e cuidando de seu legado.

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Nita e Paulo Freire se conheceram quando ela ainda não tinha completado 5 anos. Freire estudou no Colégio Oswaldo Cruz, no Recife (PE), que pertencia ao pai de Nita. Por isso, ela o conheceu ainda quando o educador era estudante de Ensino Médio. Mesmo após formado, ele permaneceu próximo à família. “Ele teve uma gratidão enorme ao meu pai, porque sem ele Paulo não teria estudado”, afirma a educadora em entrevista à NOVA ESCOLA. Eles mantiveram uma relação de amizade durante muitos anos, com Freire sendo, inclusive, professor de Nita durante a pós-graduação. Foi apenas em 1987, quando os dois ficaram viúvos, que eles se reaproximaram e deram início a um relacionamento amoroso. Eles casaram-se em 1988.

O cotidiano do casal foi compartilhado por ambos em Nós dois: crônicas, fotografias e cartas de amor. Após a morte do educador, Nita também escreveu sobre o relacionamento no livro Nita e Paulo: crônicas de amor. “Passados alguns anos da perda de Paulo, a saudade é mais amena, não é mais a saudade que quase me impossibilitou de viver. Entretanto, ela permanece em mim como um sentimento que dá sentido à minha vida […] Foi muito fácil de viver ao lado dele cheio de ternura e amor a dar, de bom humor menino, de sua simplicidade mesmo como um homem conhecido no mundo e de sua aceitação de como eu era. […] Experimentei a forma mais profunda e mais plena possível do amor. Do amor de gente como Paulo”, registra Nita no seu livro Paulo Freire: uma história de vida.

“Com Paulo eu vivi muitos dos momentos mais importantes de minha vida afetiva, amorosa e profissional, pois não fui e nem poderia ser simplesmente a ‘mulher de Paulo Freire’. Assim prossegui meus estudos”, afirma Nita na biografia. Formada em Pedagogia e professora universitária, durante o seu relacionamento com Freire, ela concluiu a tese de mestrado e de doutorado pesquisando o analfabetismo no Brasil. Atualmente, como sua sucessora legal, a educadora dedica-se à organização, publicação e divulgação da obra de Freire.

Por isso, próximo ao centenário do educador, Nita, que em novembro completará 88 anos, aceitou conversar com NOVA ESCOLA sobre a própria trajetória como educadora e sua visão do legado de Freire. Confira os destaques da conversa:

NOVA ESCOLA: A senhora primeiro pausou os estudos e, já com os filhos mais velhos, retornou à universidade. Por que escolheu a Pedagogia?
NITA FREIRE: Eu tinha feito alguns anos de Engenharia. Depois eu me casei, vim morar em São Paulo e não tinha como transferir [o curso]. Então, fiquei cuidando do lar, dos meus filhos e ajudando o marido. Chegou um tempo em que a vida foi se tornando muito monótona, mecânica e pouco desafiante.

Então, eu tive a necessidade de voltar para o mundo dos estudos. Como sou filha de educadores, a minha vida sempre foi em torno de professores. [Eu pensei]: o que eu faço melhor na minha vida, que vai ser mais interessante e fascinante para mim, é voltar para a área de Educação. Fiz vestibular e voltei [a estudar quando tinha] 40 ou 42 anos.

Como foi sua experiência como professora?
Quando terminei a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Moema [em São Paulo], fui chamada para dar aula em alguns colégios. No ano seguinte, fui convidada para voltar à Faculdade como professora. Foi um desafio muito grande, mas me dediquei muito e segui minha vida como educadora. Era professora efetiva na Faculdade [de Moema], depois eu também dei aula na Faculdade São Marcos e na Pontifícia Universidade Católica [de São Paulo]. Quando casei com Paulo [Freire], optei por deixar de trabalhar por uma série de razões.

Quando era jovem [na época que fazia Engenharia] também dei aula de Matemática e de História no Colégio do meu pai para o curso de quem ia fazer o exame de admissão para ingressar no Ensino Médio. A História do Brasil sempre foi algo que me atraiu, [acredito] que quem não estudou História, hoje sente dificuldade de entender [o que acontece no país].

Na próxima semana, comemoramos o centenário do Paulo Freire. Qual é hoje o maior legado dele na Educação?
Nunca foi tão necessário e tão procurado o pensamento de Paulo. É impressionante. Estou catalogando, com ajuda de ex-alunos doutores, todas as manifestações de tributo a Paulo. Só esse número de homenagens que estão sendo feitas mostra a importância dele nos dias de hoje. Ele está sendo um parâmetro de decência, de honestidade, de ética, de política para o bem das pessoas. É um pensamento que vai perdurar por muitos anos. Paulo se preocupa com as condições de humanidade dos seres humanos. Ele quer conscientizar [os oprimidos] da realidade para que possam se inserir na sociedade e possam interferir.

100 anos de Paulo Freire

No centenário de Paulo Freire, inspire-se no legado do educador e reflita sobre sua prática pedagógica no contexto da pandemia, do ensino remoto emergencial e da retomada das aulas em 2021.

Apesar de muitos anos terem se passado, as obras do autor continuam sendo muito atuais. Por que?
Hoje se discute abertamente, se mostra o interesse que se tem, a importância que tem Paulo com suas ideias postas há mais de 50 anos. O livro Pedagogia do Oprimido [publicado pela primeira vez em 1968] foi publicado nos Estados Unidos quando aqui não se podia falar [sobre política no Brasil]. As editoras de lá nos diziam, a mim e a Paulo, que um livro nos Estados Unidos e, em geral no mercado mundial, tem validade de 8 anos. No 9º ano, vende-se muito pouco, então, as editoras deixam de publicar. [Ou seja], autores que foram importantes nos anos 1990 não se publicam mais. No entanto, a obra de Paulo continua atual até hoje. Lê [hoje] qualquer um dos livros de Paulo e você pensa que escreveu ontem. Ele dizia que, para explicar a razão das coisas, a gente tinha que partir do nosso contexto. Paulo se enraizou no Recife para entender o que se passou e [supor] o que viria depois [para a Educação e a sociedade].

Nos últimos anos, Paulo Freire sofreu muitos ataques do governo atual. Na alta do Escola Sem Partido foram criadas muitas fake news que colocavam o educador como um doutrinador. Como a senhora vê esses ataques? Acha que isso impactou a imagem de Freire?
Acho que não. [Na verdade, acredito que] aumentou. Hoje, a literatura de Paulo ganhou uma dimensão ainda maior, porque está sendo procurada e muito solicitada por diversos setores. Foi um autor que tentaram desmoralizar, foi chamado de energúmeno pelo capitão [a afirmação foi feita pelo Presidente Jair Bolsonaro em 2019]. Isso provocou uma curiosidade muito grande [entre os mais jovens] para saber quem era esse homem que estão acusando de coisas muito vis, quem era esse sujeito tão diabólico que tem gente que adora e quem fala que é um doutrinador. Por isso, o número de leitores de Paulo tem aumentado no Brasil e no mundo todo.

Tem gente que está começando a ler e entender Paulo agora e se maravilham, porque ele [Freire] responde a todas as angústias. Paulo tinha a capacidade de pensar o ser humano. Como diz Ernani Maria Fiori [professor de Filosofia, contemporâneo de Freire]: Paulo não pensava em ideias, mas pensava na existência humana. Quem é adepto do amor, de uma vida mais solidária, unida, inteira, está com Paulo. Quem tem a utopia de construir um mundo melhor está com Paulo.

Como a senhora avalia que as escolas incorporaram o pensamento freireano?
De um modo geral, acho que estamos conseguindo entender. O número de projetos de homenagem pelo centenário não se presta a uma pessoa qualquer, mas a alguém que consideramos, respeitamos, admiramos e queremos ter presente. Tudo que ele fez foi sempre pensando em formar sujeitos históricos, sujeitos que interferem [para tornar] um mundo mais bonito. Era isso que ele queria, um mundo mais bonito.

Centenário de Paulo Freire: o legado do educador nas escolas públicas brasileiras

Apesar dos anos que se passaram desde o início de suas publicações, o pensador continua necessário e vivo na realidade de professores e gestores. Confira os relatos na reportagem especial

Em um cenário de desesperança e medo, com toda sua experiência e o legado que a senhora representa do Paulo Freire, qual é o seu sonho para Educação pública hoje?
O Paulo é um sujeito que acredita nos sonhos, na utopia de dias melhores e que [mostra que] somos os responsáveis pela sociedade que temos, por isso devemos lutar para transformá-la sempre no sentido de melhorar e de diminuir as desavenças e as desigualdades [econômicas, sociais e educacionais].

Paulo fez um projeto quando secretário e executou esse projeto na Secretaria de Educação Municipal de São Paulo, no governo de Luiza Erundina [1989], que era realmente um primor de intenções, de fazer uma escola popular para as classes populares para diminuir essa distância entre riqueza e conhecimento. Ele lutou muito para diminuir essa diferença, em certos aspectos conseguiu de fato.

[No entanto,] não é algo que acontece de repente. Para ter uma escola pública de qualidade é preciso de técnicas, tecnologia, formação de educadores e reuniões pedagógicas para discutir a prática. São essas coisas que vão fazer um professor melhor e, portanto, uma rede com mais consistência.

Fonte: https://novaescola.org.br/

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