“Se eu passar mais esse ano sem estudar, penso realmente em desistir”

“Se eu passar mais esse ano sem estudar, penso realmente em desistir”

Olá professores e leitores! Hoje trago um assunto sobre as pessoas que queiram estudar mais a pandemia os afastou da escola.

O futuro parecia promissor para Hiorrana Santos, 18 anos, aluna do terceiro ano do Ensino Médio. Em 2020, ela planejava terminar os estudos, prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e ingressar na faculdade de fisioterapia. A pandemia e a suspensão das aulas presenciais na escola estadual em que estudava, entretanto, fizeram com que os ventos soprassem em outra direção. Hiorrana, que vivia com a mãe e duas irmãs em um pequeno apartamento em Salvador (BA), acabou retornando à aldeia indígena Pataxó, em Coroa Vermelha, onde nasceu e cresceu, em busca de uma melhor qualidade de vida durante a quarentena e aguarda, sem previsão, o retorno das aulas presenciais.

 

 

 

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Hiorrana Santos, aluna do terceiro ano do Ensino Médio no quintal de sua casa na Aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, Bahia
 

Depois de quase um ano em casa, ela conta que o alívio de estar em meio à natureza, rodeada por animais de estimação, rios e árvores frutíferas convive com o desânimo e as incertezas em relação ao futuro. “Eu tinha quase tudo planejado, mas essa ordem cronológica que existia na minha cabeça, já não existe mais. É como se eu tivesse perdido um ano da minha vida, um ano importante. Perdi a concentração, o interesse pelas coisas. Foi muito desanimador”, conta. “Se passar mais esse ano sem estudar, eu penso realmente em desistir”.

Um estudo lançado pela Fundação Malala em 2020 mostrou que o fechamento das escolas, somado à crise econômica, pode afetar ainda mais as meninas, especialmente àquelas que vivem em contextos mais vulneráveis. Com base nos dados da epidemia de Ebola, que deixou as escolas fechadas por 8 meses em países africanos, o estudo estima que, aproximadamente, 20 milhões de meninas em idade escolar em todo o mundo possam estar fora da escola após a crise passar.

 

“Apesar de a diferença percentual de abandono escolar não ser significativa entre meninos e meninas no Brasil, as razões pelas quais elas abandonam a escola trazem em si um recorte de gênero”, comenta Júlia Ribeiro, oficial de Educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) no Brasil. Para a especialista, embora sejam diferentes razões que levem à evasão, é preciso identificar as causas para conseguir desenvolver ações que garantam a permanência na escola.

Mais do que eles, elas acabam se dedicando aos trabalhos domésticos e aos cuidados com seus familiares. A PNAD Contínua Educação de 2019 mostrou que 11,5% das meninas e mulheres que abandonaram os estudos no Brasil o fizeram por ter que se dedicar aos afazeres domésticos. Entre os homens, esse percentual foi de apenas 0,7%. O relatório “Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade”, da Oxfam indica que, ao todo, mulheres e meninas do mundo todo trabalham 12,5 bilhões de horas por dia, de graça, para cuidar de outras pessoas. Outro motivo que leva as meninas a se afastarem da escola é a gravidez precoce – motivo de 23,8% das alunas evadidas, segundo a PNAD. Ao abandonarem os estudos, muitas acabam não regressando, e deixam de se dedicar à vida profissional, perpetuando essas desigualdades.

 

Shayres Monteiro, de 16 anos, moradora da aldeia indígena de Coroa Vermelha, descobriu na pandemia que esperava sua primeira filha. Mesmo querendo acompanhar os estudos, viu as aulas online serem interrompidas em sua escola. Hoje, com uma bebê de quase 2 meses, ela divide a casa com sua mãe e as noites em claro com a tentativa de se conectar aos estudos, mas ainda sem encontrar um equilíbrio. “As coisas ficam mais difíceis, porque existe uma quantidade maior de tarefas a serem feitas. Apesar de poder contar com a ajuda da minha mãe, a maior parte das atividades de cuidado com a bebê sou eu quem faço”, conta.

Shayres Monteiro, aluna do primeiro ano do Ensino Médio, e sua filha Inaê em sua casa na Aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, Bahia
 

 

Rutian Pataxó, vice-presidente da Associação Nacional de Ação Indigenista e liderança do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia, conta que além dos casos de gravidez precoce e da ocupação por tarefas domésticas, o abandono escolar nas aldeias da região também é atravessado pela dificuldade de acesso de algumas meninas às escolas, pelos casos de violência doméstica e de casamentos precoces nas aldeias. “Como estamos em uma região muito turística, existe ainda a questão da fetichização do corpo da mulher indígena. Há alguns anos, a prefeitura de Porto Seguro teve que inclusive modificar o tráfego de veículos para reduzir os índices de prostituição infantil nas rodovias da região”, relata.

 

Nestes tempos de ensino remoto, há ainda a dificuldade adicional de se manter na escola que é comum a ambos os sexos: “estudar pelo celular é muito difícil, mesmo para adultos, e computador aqui é privilégio para poucos. Além do mais, a internet não chega a todas as comunidades, e quando chega, é cara”, diz Rutian.

 

Elos frágeis

A historiadora Arilda Inês Miranda Ribeiro conta que o acesso das mulheres à Educação no Brasil tem pouco mais de 150 anos. Durante todo o período colonial, as mulheres ficaram excluídas do sistema escolar. Quando muito, podiam se educar nos conventos aprendendo a rezar, bordar e costurar. Foi só em meados do século 19 que elas passaram a ser oficialmente aceitas em instituições de ensino, e ainda assim, sem ter acesso aos mesmos conhecimentos que os garotos. “Mulheres não podiam ter aulas de geometria, por exemplo, ou de outras disciplinas consideradas mais ‘racionais’”, explica. O acesso foi sendo ampliado, mas, apenas por volta dos anos 90, o quadro se reverteu e as mulheres ultrapassaram os homens em níveis de escolarização no Brasil.  No entanto, a pandemia pode colocar boa parte desses avanços em xeque. Garantir a continuidade da aprendizagem das meninas e seu retorno à escola é fundamental para manter os ganhos educacionais obtidos nas últimas duas décadas.

Se o vínculo entre as mulheres e a escola se deu tardiamente, nas comunidades mais vulneráveis ele é ainda mais recente. “A Educação escolar indígena, por exemplo, é muito recente no Brasil. Aqui, em Coroa Vermelha, a maior aldeia urbana do país, a escola indígena com a atual estrutura só chegou nos anos 2000, junto com as comemorações dos 500 anos de descobrimento”, conta Rutian. Ela diz que em muitas aldeias da região, a sala de aula ainda é feita por carteiras embaixo de árvores. “Com a pandemia, a gente vê que as escolas contam muito com a ajuda dos pais para ajudar os filhos com o dever. Mas boa parte dos nossos pais não teve acesso à escola. Então como é que a gente dá conta disso, se muitas vezes os pais sequer sabem ler?”.

 

De acordo com dados do Censo Escolar de 2019, alunos de comunidades indígenas abandonam a escola quase 4 vezes mais do que alunos brancos. Entre os alunos negros, o percentual é o dobro da população branca.  Com a pandemia, o quadro pode se agravar ainda mais, impactando duplamente as meninas destas comunidades.

 

Fernanda Viana Araújo, assistente social que vive no complexo da Maré, é mãe solo de duas crianças em idade escolar e conta que ficou sabendo pela televisão que as aulas de sua filha Fernanda Ferreira, 13 anos, seriam interrompidas. “Em nenhum momento fomos comunicados pela escola. Decidi ir até lá para saber o que estava acontecendo e dei de cara com o portão fechado”. Depois de um ano sem atividades, em 2021, a escola começou a disponibilizar materiais online para os alunos.

 

Para Fernanda (que leva o mesmo nome da mãe), o período foi de muitas tensões. Sozinha em casa na maior parte do tempo, ela começou a estudar pelos livros os conteúdos que imaginava serem adequados ao 7º ano do Ensino Fundamental.  “Eu não sabia quais conteúdos eu deveria estudar, e quando eu tinha dúvidas, não tinha também pra quem perguntar. Minha escola não chegou a ter nem um grupo de WhatsApp, então vou pesquisando por minha conta”. Para fazer suas pesquisas, Fernanda espera a mãe chegar do trabalho à noite para usar o único celular da família. “A gente tem um celular só em casa para revezar entre três pessoas. É inviável estudar dessa maneira”, diz.

 

Fernanda faz parte das estatísticas do estudo “Educação de Meninas e Covid-19 no Conjunto de Favelas da Maré”, desenvolvido pela ONG Redes da Maré em 2020, que mapeou a condição de estudos de 1009 meninas nas 16 favelas que compõem o Complexo da Maré. O objetivo do estudo foi tentar entender como as meninas em idade escolar conseguiram manter o processo de aprendizagem a partir da suspensão das atividades pedagógicas presenciais.

Na Maré, de cada quatro meninas entrevistadas pela pesquisa, apenas uma tem computador em casa e só um terço delas possui internet que não seja móvel. A maioria, segue acompanhando as atividades escolares por pacote de dados no celular, mais especificamente, em grupos de WhatsApp. Assim como em boa parte das periferias e favelas do país, o acesso à internet na Maré é precário e os pacotes de dados normalmente não alcançam até o final do mês, o que faz milhares de estudantes terem que esperar até o próximo mês para a renovação do pacote de dados e acesso aos conteúdos enviados.

 

 

Apesar de não estarem no centro dos confrontos armados, as meninas da Maré também sofrem o impacto da violência urbana em suas vidas. Durante a pandemia, Fernanda conta que perdeu um primo de idade próxima à sua em um conflito armado, e que não é a primeira vez que convive com o luto de ver pessoas de sua família e amigos assassinados.

Boletins de segurança pública editados pela Redes da Maré registraram em 2019, 24 dias letivos a menos no ano escolar de crianças e jovens por conta de conflitos e operações policiais. Apesar de as operações policiais terem sido reduzidas no ano de 2020, as trocas de tiros entre facções seguem acontecendo. “Às vezes, a gente aumenta o volume da televisão para se distrair, mas sabe o que está acontecendo lá fora. Não é seguro. Meu emocional ficou muito fragilizado nessa pandemia. Com a minha mãe trabalhando fora o dia todo, tive que muitas vezes segurar a barra sozinha”, conta.

 

Fernanda mãe conta que a trajetória de vida das mulheres na favela é atravessada por uma série de violências. “São violências físicas, econômicas e sociais que atravessam a nossa trajetória de vida. A escola não chamar a gente para entender quais medidas podem se adequar às nossas vidas [na pandemia], é de novo outra forma de violência. Isso tem um impacto muito negativo nas nossas subjetividades”, explica.

“Quando a gente ouve com profundidade o contexto em que essas meninas estão inseridas, não dá pra afirmar que elas simplesmente abandonaram a escola. Mas sim que existe um conjunto de práticas sociais tão perversas, que acaba culminando com a expulsão dessas meninas do sistema educacional”, explica Benilda Regina Paiva, coordenadora do Programa de Direitos Humanos do Odara Instituto da Mulher Negra.

Para Julia, embora haja uma constante responsabilização dos estudantes sobre o fracasso escolar, ele precisa ser compreendido a partir de um conjunto de fatores. “Qual é a situação econômica que essas meninas enfrentam? As que engravidaram estão tendo acesso aos seus direitos? Podem acessar um pré-natal? A escola tem um espaço de creche que possa garantir que o bebê esteja cuidado quando a mãe precisar retornar para a escola?” questiona. “A Educação acaba reproduzindo as desigualdades sociais que já existem na nossa sociedade. É por isso que precisamos focar nos grupos mais vulneráveis, desenvolvendo políticas específicas que deem conta de suas realidades”, complementa.

 

Busca ativa em ação

Para acompanhar as desengajadas com os estudos, semanalmente, um grupo de mulheres da Rede da Maré visita a casa de alunas infrequentes para compreender melhor os motivos pelos quais elas não estão acessando os conteúdos e buscam identificar estratégias específicas que possam ajudar essas meninas a se aproximarem da escola. “A busca ativa tem sido uma das práticas mais efetivas no mundo na redução da evasão, mas esse é um trabalho que temos que fazer em parceria com o poder público”, diz Andreia Martins, pesquisadora e uma das diretoras da ONG Redes da Maré. A especialista acredita que identificar as razões pelas quais essas meninas estão deixando a escola é fundamental, mas só fazer essa identificação não é suficiente. “Temos que tentar resolver juntos, pensando em políticas intersetoriais e entender que isso não diz respeito apenas à escola, mas envolve áreas como saúde, assistência social, entre outras”.

 

Neste sentido, a Unicef conta com um programa de busca ativa escolar, que permite que prefeitos de todos os municípios se cadastrem e organizem uma rede intersetorial para enfrentar o desafio da exclusão escolar. Só este ano já são 1.400 municípios cadastrados e 80 mil crianças e adolescentes que foram identificados e matriculados. Durante a pandemia, a organização criou um programa de busca ativa específico para crises e emergências, de modo a trazer a escola para o centro das estratégias. “Quando a escola identifica que um aluno ou uma aluna não estão acompanhando as atividades, é preciso conhecer as razões. A partir daí, caso seja necessário, a escola deve acionar a rede de proteção estruturada no município para que haja uma resposta rápida e esse vínculo com a escola não seja rompido”, diz Júlia, que ressalta a importância dos acompanhamentos de frequência por parte da escola e do estreitamento dos laços entre a escola e as comunidades.

Andreia reconhece o enorme esforço de professores e gestores escolares durante esse período, e afirma que é fundamental encontrar parcerias e soluções que possam manter essas meninas na escola e assegurar a elas um ensino de qualidade. “Imagino que não seja fácil para os gestores públicos pensarem em alternativas, mas acredito que tenha que partir de uma escuta verdadeira. Quando pensamos em políticas públicas, pensamos no macro, mas também temos que olhar as especificidades de quem está lá na ponta para saber como é que você pode de fato, e com maior eficiência, alcançar essas pessoas”.

 

Práticas para reconstruir com igualdade

Pensando na reabertura das escolas que já vem acontecendo em alguns países, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) publicou um guia de boas práticas para que meninas possam retornar à escola com igualdade. Separamos aqui algumas delas:

– Criar sistemas de alerta precoce para registrar a ausência regular/prolongada ou o não retorno à escola das meninas quando estas reabrirem. Identificar se a ausência tem como razões casamento, gravidez, ou outras questões relacionadas ao gênero;

– Qualificar as meninas com o conhecimento para permanecerem seguras na internet. Priorizar medidas para protegê-las de cyberbullying, exploração e outras formas de violências online durante programas de ensino a distância e estabelecer mecanismos de denúncia e encaminhamento para apoiar as meninas afetadas;

– Fornecer a formação adequada aos professores e aos profissionais de Educação para conduzir discussões confidenciais com meninas vítimas de violência durante o fechamento das escolas, e ajudá-las no encaminhamento para serviços adequados;

– Estabelecer parcerias para que meninas que testemunharam ou sofreram violência durante o fechamento das escolas tenham acesso a serviços psicossociais e jurídicos;

– Oferecer soluções de ensino à distância diversificadas, inclusivas e acessíveis, considerando também ambientes com baixa conectividade; e garantir flexibilidade de horários no ensino remoto, considerando que as meninas geralmente têm uma carga maior de obrigações especialmente quando as escolas estão fechadas;

– Alocar fundos e fazer parcerias com iniciativas lideradas por mulheres que apoiem de forma ativa a continuidade da aprendizagem de meninas durante o fechamento de escolas e possam garantir seu engajamento;

– Priorizar a liderança de meninas e mulheres e reconhecer seu papel como agentes de mudança. Integrá-las de forma sistemática e efetiva nas consultas e na tomada de decisão sobre resposta educacional à Covid-19.

 

 

Fonte: https://novaescola.org.br/

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