Como trabalhar o desenvolvimento integral no Novo Ensino Médio

Como trabalhar o desenvolvimento integral no Novo Ensino Médio

Há mais de 130 anos as ferrovias passaram a fazer parte da história de Curitiba (PR). As estradas de ferro possibilitaram o desenvolvimento econômico do Paraná e hoje integram a paisagem de bairros como o Boqueirão, um dos maiores e mais populosos da capital. É onde vivem os alunos do Ensino Médio do Colégio Estadual Professora Luiza Ross que, provocados pela professora de Geografia Gabriela Loureiro Martins, investigaram a natureza e a cultura da região a partir do sistema de transporte sobre trilhos.

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Fundamentado na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que aponta dez competências gerais para serem abordadas transversalmente por todas as áreas do conhecimento, o projeto, realizado em 2019 e batizado de “Caminhos das ferrovias, natureza e cultura”, assumiu um caráter interdisciplinar, envolvendo dez professores de Geografia, História, Arte e Inglês e cerca de 300 estudantes do 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio.

Por um mês, durante uma aula na semana, os educadores trabalharam diversos temas, de modo que cada componente curricular pudesse contribuir com a temática central. Além disso, a escola apostou em parcerias com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que ministrou duas palestras para os alunos, e com a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF), onde uma aula de campo foi realizada. “A autonomia dos jovens foi fortemente instigada por meio das diversas ações propostas”, conta Gabriela.

Um exemplo disso está no fato de os próprios alunos terem escolhido como fariam a sua pesquisa indicando uma de três categorias: a produção de uma fotografia bilíngue, a confecção de um desenho ou a construção de uma maquete. No fim, todos tiveram de produzir também um folder bilíngue. Os resultados foram avaliados por uma banca e as produções selecionadas integraram exposições na escola e no Iphan. Ao final, seis competências gerais foram intencionalmente trabalhadas de maneira integrada: conhecimento; pensamento científico, crítico e criativo; repertório cultural; argumentação; empatia e cooperação e responsabilidade e cidadania.

“Durante todas as ações e atividades, desenvolvemos aspectos culturais, afetivos e sociais de nossos estudantes. Com esse trabalho, eles criaram um laço de identidade com o bairro e compreenderam as ferrovias também como uma riqueza histórica, patrimonial e cultural”, conta Gabriela.

A professora Gabriela Loureiro, apresenta resultados do projeto Caminhos da Ferrovia.
 

O aluno em sua integralidade

Anna Penido, diretora executiva do Centro Lemann, explica que as competências gerais da BNCC dialogam com as cinco dimensões do desenvolvimento humano — física, intelectual, cultural, social e emocional — e, por isso, contemplam também as chamadas competências socioemocionais. “Como uma faz parte da outra, a ideia é de que o ser humano — no caso, o estudante — possa se desenvolver ao longo da Educação Básica de uma maneira integral e integrada, em que todas essas dimensões sejam desenvolvidas de forma articulada e concomitante”, ressalta.

Na prática, isso quer dizer que não deve haver uma hora específica para trabalhar separadamente o cognitivo, o socioemocional, o cultural ou o corpo, por exemplo, mas sim a intenção de desenvolver todas essas potencialidades integralmente. “Essa é a ideia das competências gerais: ser um guarda-chuva para todos esses conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que a gente quer desenvolver nos alunos”, ressalta a especialista.

Para isso, diz Anna, é importante que os educadores se sintam corresponsáveis por esse processo. A especialista considera interessante que, ao planejar uma aula, o professor já identifique quais competências podem ser trabalhadas em diálogo, por exemplo, com as habilidades específicas da área do conhecimento que será abordada.

Para além das aulas dos componentes curriculares, Anna destaca ser fundamental ter em mente que os aspectos socioemocionais podem ser desenvolvidos também por meio de outras atividades da escola. Exemplos disso são gincanas, que podem levantar pontos como empreendedorismo, liderança e capacidade de resolver problemas, e os grêmios, que mobilizam pautas ligadas à tomada de decisão, diálogo, argumentação e pensamento crítico. Além, é claro, de atividades culturais como dança e teatro, que trabalham o corpo, a sensibilidade e o bem-estar.

“Temos uma série de alternativas para abordar isso tudo dentro e fora da sala de aula, porém o mais importante é: quanto mais protagonista for esse estudante, quanto mais ele se envolver na construção do seu próprio conhecimento, mais conseguiremos trabalhar todas essas dimensões e competências. Isso é impossível quando ele é um ser passivo, que só fica recebendo informação”, comenta Anna.

Empatia e cooperação nas aulas de Química

Foi pensando nesse protagonismo que, por cerca de quatro anos, o professor Raph Gomes Alves, que hoje é consultor educacional, desenvolveu um trabalho de monitoria para ajudar a reduzir a defasagem entre estudantes do Ensino Médio nas aulas de Química.

Ao perceber que alguns alunos dominavam os conteúdos enquanto outros tinham mais dificuldades, o educador teve a ideia de propor que aqueles com melhor desempenho fossem monitores dos colegas do outro grupo. Assim nasceu a iniciativa “Aluno Monitor”, por meio da qual os estudantes contribuíam com os colegas de sala durante a aula, no momento de desenvolvimento das atividades, por exemplo, e voltavam em alguns dias específicos, no contraturno, para atendimentos.

Para registrar a participação do estudante na iniciativa, o professor criou uma ficha em que o interessado em receber a monitoria apontava o que foi estudado na sessão, fazia a avaliação do monitor e sua autoavaliação. Ao final do bimestre, os alunos apresentavam a ficha e, com base nela, Raph criava uma valoração de nota como um incentivo.

O educador explica que a ação foi importante porque teve efeitos positivos diretos e indiretos. Ao perceberem que, por meio dessas trocas, todos aprendiam e ensinavam, o estímulo maior passou a ser não a nota, mas o reconhecimento dos demais. “O monitor passou a entender que ensinando ele aprendia e que os outros entendiam – na prática – o valor de poder colaborar com os colegas. De forma geral, foi um movimento bem bacana, em que a gente apostou no protagonismo juvenil e desenvolveu a capacidade de colaboração e empatia”, diz Raph. “Pode também ser uma estratégia importante para apoiar na recomposição da aprendizagem dos estudantes”, completa.

Projeto de vida é sobre “quem” e não “o que” o aluno quer ser

A perspectiva do desenvolvimento integral como direito dos estudantes é explicitada na BNCC por meio das competências gerais. Considerando o seu efeito normativo e de cumprimento obrigatório, as redes de ensino e as escolas precisaram repensar suas propostas curriculares e os projetos político-pedagógicos de forma a contemplar atitudes e práticas que apoiem crianças e jovens em sua integralidade.

Gabriela Loureiro, professora do Ensino Médio, em momento de questionamento dos alunos.
 

Nesse caminho, para além de outras práticas e atitudes que devem ser transversais, o componente curricular Projeto de Vida – previsto pelo Novo Ensino Médio – pode apoiar os estudantes na construção e no planejamento de sua trajetória. O componente pode ser um meio de o aluno exercer sua cidadania e embasar suas decisões com “liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade”, levando em conta eixos que abarcam o pessoal, o social e o profissional.

“O trabalho com o Projeto de Vida muitas vezes é confundido com carreira e escolha para o vestibular. Entretanto, é muito mais amplo. A grande pergunta que orienta esse componente é ‘quem eu quero ser’, e não ‘o que eu quero ser’”, ressalta Anna Penido. É a primeira pergunta, diz, que vai levar a turma a refletir mais profundamente sobre as próprias aspirações, potencialidades, limitações e possibilidades.

Amparados e orientados pela escola na construção de seus projetos de vida, os estudantes poderão não somente planejar o que querem para o futuro, mas começar a empreender esse projeto desde os tempos da escola. Isso pode ocorrer, por exemplo, ao compor o próprio itinerário formativo, isto é, as trilhas que cada um deve optar por cursar, de modo a se aprofundar nos conhecimentos de seu interesse. Ao lado da formação geral básica – conhecimentos expressos na BNCC, obrigatórios para todos –, os itinerários formativos compõem o currículo do Novo Ensino Médio.

Gabriela Loureiro Martins observa que os alunos chegam a essa etapa “perdidos” e sem ideia de seu futuro pessoal e profissional. Para ela, o trabalho com o Projeto de Vida é fundamental em todas as etapas da Educação Básica, sobretudo no Ensino Médio. Para isso, mirar em um desenvolvimento integral, que considere ações nos campos intelectual, físico, afetivo, social e cultural, pode colaborar, e muito, com esse processo.

A professora de Geografia conta que sempre promove ações voltadas ao autoconhecimento. Neste trimestre, por exemplo, para ajudar as turmas do 2º e 3º anos, convidou duas ex-alunas da escola, que já estão no Ensino Superior, para realizarem algumas conversas sobre seus projetos de vida e tirarem dúvidas a respeito do que mudou, de suas escolhas profissionais, do Enem, do que significam programas sociais como o Prouni etc. Ao darem depoimentos sobre os caminhos que percorreram, as universitárias acabaram ajudando os atuais estudantes a pensarem mais sobre a própria jornada após o Ensino Médio.

Anna, por sua vez, salienta que o Projeto de Vida prescinde de uma pesquisa muito ampla, dentro e fora da escola, para que os estudantes consigam identificar, na dimensão pessoal, quais são as suas possíveis escolhas e que estilo de vida vão optar para si; na dimensão social, como querem exercer sua cidadania, e na dimensão profissional, como querem se envolver com o mundo do trabalho.

Ao trabalhar o desenvolvimento integral dos estudantes, os professores do Ensino Médio podem, inclusive, possibilitar impactos positivos para a comunidade onde a instituição de ensino está inserida. “Esses valores fazem com que os alunos se importem com mais do que seus interesses pessoais, faz com que também se capacitem e se empoderem para intervir naquilo que é comunitário, inclusive atuando como agentes de melhoria da própria escola, na resolução de conflitos, na melhoria de processos, sentindo-se corresponsáveis pelo resultado da escola, pelo desenvolvimento dos colegas e pelo que está na comunidade de entorno”, completa a especialista.

Fonte: https://novaescola.org.br/

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