“Temos uma dívida com os professores pela maneira como se superaram durante a pandemia da covid-19”

professor

O retorno à escola em plena pandemia não é tarefa simples. Além da defasagem de aprendizagem das turmas, há ainda o medo de contaminação pelo coronavírus, o trauma e o luto e de estudantes e professores diante das perdas pessoais. Até o final de janeiro, o Brasil teve mais de 224 mil mortes pela covid-19, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, em que o número já ultrapassa 440 mil. A reinvenção profissional exigida aos educadores para lidar com esse contexto, questões socioemocionais e novas práticas em sala de aula atravessam o contexto escolar de ambos os países.

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“Nós temos uma dívida com os professores, uma dívida difícil de pagar, pela maneira como eles se superaram durante a pandemia da covid-19”, diz Maria E. Hyler, diretora-adjunta e pesquisadora-sênior do Learning Policy Institute [Instituto de Política de Aprendizagem, em tradução livre], em Washington (EUA), um dos maiores centros de estudos em políticas educacionais e práticas profissionais de professores dos Estados Unidos. Para ela, é hora de trazer os educadores para construir os próximos passos. “Eles aceitaram os desafios impostos nesse último ano de uma maneira incrível, mas é necessário dar aos professores mais voz na formulação e no desenvolvimento de políticas que tornem o seu trabalho mais gerenciável, além, é claro, de fortalecer a profissão de professor. Os educadores precisam de mais confiança e de mais apoio no trabalho que exercem”.

Para entender melhor os desafios que atravessam a formação docente num contexto de mudanças como é o momento atual, NOVA ESCOLA conversou com Maria E. Hyler. Na entrevista, a especialista norte-americana aborda possibilidades para a formação de professores, a conexão entre socioemocionais e aprendizagem e a importância das redes de colaboração. 

Você poderia explicar no que exatamente consiste o trabalho do Learning Policy Institute? 

MARIA E. HYLER O Learning Policy Institute coleta dados, conduz estudos e divulga pesquisas de alta qualidade que visam melhorar a Educação, tanto no âmbito das políticas públicas quanto no âmbito da prática profissional. Nós trabalhamos com formuladores de políticas públicas, pesquisadores, educadores, grupos comunitários e outros setores para fazer avançar políticas baseadas em evidências, que visam apoiar o empoderamento e uma aprendizagem cada vez mais igualitária para todas as crianças do país. Além disso, nós conectamos os legisladores aos profissionais envolvidos com o campo da Educação nos níveis local, estadual e municipal, com evidências, propostas e ações necessárias para fortalecer o sistema educacional, desde a pré-escola até o ensino superior e a preparação para a carreira. O Instituto não visa ao lucro e não possui vínculo partidário.

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Os estudos e publicações do Instituto sempre enfatizaram que a formação dos professores precisa mudar. E agora, vem a pandemia da covid-19 e todos os desafios que ela trouxe. Quais eram as principais necessidades de mudança na formação já mapeadas, e o que você acrescentaria à lista diante do cenário em que estamos vivemos hoje?

Os formuladores de políticas públicas e os gestores escolares necessitam considerar os novos papéis que os educadores podem exercer, e os novos arranjos de ensino que são possíveis. Essas novas funções dizem respeito tanto aos professores novatos, quanto aos mais experientes, e ainda àqueles que estão estudando para se tornar educadores.

Especialmente agora durante a pandemia da covid-19, nós precisamos de programas de formação de professores que sejam abrangentes, de alta qualidade e que sejam totalmente custeados para os docentes. Aqui nos Estados Unidos, uma das barreiras para uma formação de professores de alta qualidade é o alto custo dos cursos de formação mais completos e aprofundados. Esses programas estão alinhados com as últimas pesquisas científicas relacionadas ao trabalho de lecionar. Eles se baseiam na ciência da aprendizagem e do desenvolvimento, e enfatizam novos conhecimentos necessários a respeito de desenvolvimento social, emocional e cognitivo e ainda abordam práticas pedagógicas relacionadas ao trauma, que são essenciais no atual contexto.

É preciso, também, que haja um foco maior em trajetórias de formação que preparem cada vez mais esses profissionais para as atividades de ensino. Um exemplo é oferecer residências para professores, com bolsas de estudo para que consigam se manter, e permitir que esses profissionais tenham um ano inteiro de experiência de campo com um professor-orientador qualificado, alinhando, assim, teoria e prática. Isso dá ao professor um tipo de preparação integral que permite que ele continue trilhando caminhos na profissão de educador.

E, entre as possibilidades a serem trabalhadas a partir de agora, estão o estímulo cada vez maior a atividades de apoio e orientação, que podem ocorrer sob diversas formas: professores veteranos podem se engajar na produção de módulos de aprendizagem profissional para professores menos experientes; esses mesmos professores mais experientes — que talvez não possam mais lecionar pessoalmente por um tempo — podem ser capacitados pelos educadores que dominam mais a tecnologia, consolidando um uso cada vez melhor do ensino híbrido e a distância; e ainda, pode-se considerar a possibilidade de termos professores mais experientes trabalhando de casa lecionando remotamente para alunos que, por variados motivos, também precisarão ficar um tempo sem se deslocar para a escola. 

Um debate intensificado pela pandemia da covid-19 é a conexão entre aprendizado e emoções. Na sua visão, o que precisamos aprender sobre as socioemocionais e já pôr em prática com os estudantes? E de que forma professores podem lidar com questões, por exemplo, ligadas ao trauma de seus alunos em relação à covid-19 que afetem seu desempenho escolar? 

É muito bom que as pessoas estejam prestando atenção a isso nesse momento, porque nós sabemos, por meio da ciência do desenvolvimento da aprendizagem, que as emoções e as relações sociais afetam o aprendizado. O desenvolvimento da criança e do adolescente é maleável e os seus cérebros se desenvolvem mais plenamente quando se sentem seguros e conectados física e emocionalmente e quando estão interagindo com outras pessoas.

Com isso, relacionamentos positivos — incluindo aí a confiança em seus professores — e emoções positivas — como o interesse e a agitação — literalmente abrem a cabeça para o aprendizado. E, ao mesmo tempo, emoções negativas como fracasso, ansiedade, duvidar de si mesmo e o próprio estresse desses tempos em que estamos vivendo reduzem a capacidade do cérebro de processar informações e, consequentemente, de aprender. E faz sentido, não é mesmo? Quando nós nos sentimos estressados, não somos capazes de aprender nada.

Desse modo, a aprendizagem é moldada por dois elementos principais: consciência interpessoal, que inclui a habilidade de lidar com o estresse e direcionar nossas energias para atitudes mais produtivas; e habilidades interpessoais, que se referem ao ato de interagir de maneira positiva com os demais ao redor, resolver conflitos e trabalhar em equipe.

Então, o que professores e escolas podem fazer? Realmente focar em relações humanas como um ingrediente essencial para um desenvolvimento e uma aprendizagem mais saudáveis. As relações de apoio entre crianças e adultos atenciosos com elas são essenciais para um melhor aprendizado. Precisamos promover relacionamentos positivos e estáveis nos ambientes escolares, ??que possam atenuar os efeitos negativos de graves adversidades, como essa que estamos vivenciando agora. Os adultos devem ter consciência, empatia e competência cultural para compreenderem as experiências, necessidades e as próprias formas de expressão das crianças. Com isso, é possível promover o desenvolvimento de comportamentos e atitudes positivas, e construir a confiança necessária no educador para que ele consiga dar o suporte necessário à aprendizagem dos estudantes.

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Um tópico bastante presente nos estudos realizados pelo Instituto é a importância de se construir uma rede de colaboração entre os profissionais da Educação.  Durante a pandemia, observamos muito pelo Brasil a consolidação de uma rede virtual de apoio e solidariedade entre professores, de norte a sul do país. Você acredita que com o fim da pandemia os professores continuarão considerando essa como essencial? E de que forma ela pode funcionar de uma maneira mais estruturada?

Colaboração será importante em 2021 e além. Nas escolas americanas, nós sempre tivemos muito pouco tempo para colaborações durante o dia a dia escolar. E agora o que nós estamos vendo é o surgimento de uma nova visão, muito mais baseada em trabalho em grupo e no estabelecimento de momentos de colaboração entre os professores, agora mais do que nunca, num cenário colaborativo muito parecido com esse que você descreveu do Brasil em 2020.

Então, o que tem ocorrido por aqui é que muitos formuladores de políticas públicas, estados e distritos estão mudando a maneira de pensar em relação ao uso do tempo no cotidiano escolar, especialmente no que se refere ao momento de reabertura das escolas e a volta às aulas presenciais. Por exemplo, algo que vem sendo sugerido é a possibilidade de se estabelecer uma rotina de quatro dias de trabalho ensinando em sala de aula, e um quinto dia separado para planejamento colaborativo entre professores. E isso é fundamental, porque para dar continuidade a esse tipo de colaboração, precisamos criar estruturas assim, que permitam que os professores utilizem o tempo e o espaço escolar para seguirem se apoiando e se ajudando cada vez mais.

Além disso, é interessante observar que muitos movimentos de colaboração entre professores surgiram de maneira orgânica, assim como aconteceu no Brasil. Aqui nos EUA, nós temos uma rede de programas para formação de líderes e professores, o Educator Preparation Laboratory [Laboratório de Formação de Professores, em tradução livre]. Trata-se de uma união de diferentes programas de formação de professores de todo o país, e que realmente se aliaram nesse momento para aprender uns com os outros, apoiarem-se uns aos outros, e para compartilhar recursos relacionados à melhor maneira de preparar os professores para esses tempos desafiadores para a Educação.

Qual mensagem você deixa para os professores brasileiros, que vivem e trabalham em um país que, assim como os Estados Unidos, está sendo fortemente atingido pela pandemia?

Eu digo: muito obrigada! Muito obrigada por seguirem colocando em primeiro lugar as necessidades dos seus estudantes, das famílias e das suas comunidades, mesmo em meio a tempos incrivelmente desafiadores e traumáticos. Além disso, gostaria de pedir que vocês se certifiquem de que estão cuidando tão bem de si mesmos quanto estão cuidando dos seus estudantes. Porque nós frequentemente pensamos no trauma e no estresse que os nossos alunos estão enfrentando, mas precisamos reconhecer o preço que está sendo pago pelos educadores nesse momento também. Por isso, é importante levar em conta que aquelas mesmas práticas orientadas para questões emocionais, sociais e de trauma, que estamos estudando e aplicando com os nossos alunos, precisam também ser aplicadas aos profissionais de Educação como um todo, e a nós mesmos. E, mais uma vez, obrigada por colocarem todos os seus esforços, alma e coração nesse trabalho que estão realizando.

Fonte: https://novaescola.org.br/

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